Bilhete II

Querida,

Por favor não repare na minha bagunça quando chegar em casa. Deixei minhas frustrações, que estavam enfiadas no armário, espalhadas pelo chão. Tentei guardar as alegrias que tivemos na gaveta, mas eram poucas, couberam na caixinha de nossas alianças. As tristezas, desde que te conheci, não cabiam em lugar nenhum, e podiam aumentar, então arranjei um lugar para elas no porão. Estou procurando ainda meus sonhos de juventude, que não sei onde guardei. Deixei para você um adeus seco em cima da cama. Estou levando comigo algumas saudades, mas também a certeza de dias melhores. Se precisar falar comigo, acione suas lembranças.

Sempre seu, Renato

Inspirado em “Bilhete”, de Carlos Emilio Faraco

“Vólice”

Vovó é mamãe com açúcarAcabo de ler no Facebook, em homenagem ao dia, que avó é mãe com açúcar. Deve ser por isso que minha avó Alice, ou “Vólice” numa palavra só, como eu dizia quando era moleque, sempre preparava seus quitutes quando me encontrava.

Quando íamos passar o Natal com ela, em Vila Velha, ES, fazia com muito cuidado todos os itens para uma ceia farta, e sempre nos recebia com muito açúcar. Preparava fios de ovos, torta de nozes, torta de damasco (com geleia feita por ela mesma) e bolo de Natal com frutas cristalizadas. E tinha também os salgados, como as empadinhas de queijo, pra não falar nos tradicionais peru e o tender.

Quando nos visitava em nossa casa, em São Paulo, sempre no mês de setembro, tempo dos nossos aniversários (o dela, 10, o da minha mãe, 21, e o meu, 25) fazia de tudo. Biscoitinhos de fécula de batata, bolinhos de polvilho (que aprendeu lá no Paraná, onde nasceu, a chamar de bolo de goma), e diversos bolos e doces variados.

Quem sabe avó é mãe mais habilidosa? Fosse isso eu saberia por que minha “Vólice” desenvolveu a destreza impressionante de fazer crochês que eram sucesso entre todas as mulheres de sua época. No início das minhas lembranças suas mãos eram ágeis, mas com o passar dos anos foram perdendo a rapidez. Não importa. Na minha memória ela comandava uma agulha esquisita, que mais parecia um anzol a enganchar a linha, e assim criava paninhos, centros de mesa, toalhas e muitas coisas mais.

Dissessem que avó é mãe ao quadrado eu teria me lembrado do dia em que eu, com sete ou oito anos, queria espiar pela janela a área de lazer do prédio em que ela morava, o Edifício Guruçá, um dos primeiros a surgir na Praia da Costa. Eu me arriscava para ver se estava lá embaixo algum dos meninos para brincar comigo. “Vólice” irritou-se com minha postura desafiadora (ela já tinha dito para eu não subir ali, mas eu insistia) e me deu um tapa. Olhei bravo e disse: “só minha mãe pode fazer isso!” Foi aí que ela me ensinou que não, ela era uma autoridade maior ainda. Nunca mais me esqueci da lição. E nunca mais subi naquela janela.

Tivessem falado algo sobre avó ser uma mãe ainda mais sábia, eu me lembraria do dia em que eu, com dezesseis anos, recebi na casa dela uma menina com quem eu vinha saindo nas férias de verão, que tinha dezoito. “Vólice” percebeu logo: “meu filho, essa menina é mais velha do que você, isso não pode dar em boa coisa”. Sábias palavras… não deu mesmo em boa coisa, mas isso não vem ao caso. O importante é que a visão arguta daquela quituteira de mão cheia já sabia que boa coisa não haveria de sair dali.

Como morávamos longe, demorou para que conhecesse outra namorada minha. Mas conheceu. E ficou chocada quando soube que eu, depois de um ano e meio de namoro, aos 19 anos, havia desmanchado tudo com a moça que ela aprovava. “Mas como assim?” Ela não podia compreender. “Vólice” foi criada no tempo em que os relacionamentos eram quase indissolúveis, não havia essa facilidade que temos nos dias de hoje de terminar um namoro por um motivo qualquer.

Se eu tivesse lido no Facebook que avó é mãe que precisa ainda mais de afeto, eu lembraria que “Vólice” tinha ciúme de minha outra avó, “Vómaria”, minha avó paterna. A pobre Alicinha não percebia o valor que ela tinha para mim, e quanto os seus mimos e afagos tornavam-na gigante aos meus olhos e ainda mais em meu coração.

Ela era tão gigante que viveu até os noventa e seis anos. Rezava todas as noites antes de dormir, enquanto a memória ainda permitia, e talvez tenha sido esse o seu segredo de sua longevidade. Ao vê-la tão protegida pela família, amada por todos, eu sabia que suas orações valiam ouro. Já faz três anos que ela foi encontrar-se com o Criador. Eu tenho saudade da felicidade em que eu ficava quando falávamos ao telefone e ela me dizia: “meu filho, vou lhe incluir em minhas orações.” E eu só podia responder o óbvio: “graças a Deus”.

O cronista aprendiz

ImagemA casa da minha avó tinha tudo para ter cheiro de mofo e papel velho – mas não tinha. Era coberta por estantes e, em cada uma delas, mil livros. Não é uma hipérbole não, nem sei como ela e meu avô conseguiram juntar tanto conhecimento contido em simples prateleiras. É por isso que o cheiro daquele lugar, pra mim, não tinha a severidade da poeira que dava fortes crises de asma a meu irmão. O cheiro era outro. Era cheiro de cultura.

Eu era super moleque e me divertia apenas olhando para as lombadas. Eu conferia sempre aquela união de cores que não combinavam. Uma coleção de livros que eu nunca li. Mas estavam todos lá, ao alcance da mão. E estão gravados em minha memória afetiva. Eu amo aqueles livros com o mesmo amor que tenho (até hoje) pela minha já falecida avó.

Foi ela, Dona Maria, que me ensinou uma das lições mais profundas que sigo até hoje: “Quando não souber algo e ficar com a dúvida, consulte imediatamente”. Ela nunca usou essas palavras. Mas me mostrou na prática como fazer isso. Digamos que eu perguntasse a ela:

– “Vó, o que quer dizer palíndromo?”

Mesmo que soubesse, ela não me diria a reposta. Ela me orientaria: “vá lá, pegue o dicionário e consulte você mesmo”. Sabia lição! Até hoje mantenho o hábito de correr para pesquisar imediatamente qualquer dúvida que me venha à cabeça, sobre qualquer assunto. Por isso, uma de minhas frases preferidas é: “Culto é aquele que sabe onde encontrar aquilo que não sabe”, do sociólgo alemão Georg Simmel (obrigado, Wikipedia, por me confirmar a nacionalidade dele, até aqui eu estava achando que o homem era francês). Não sei se minha avó tinha a intenção de me ensinar essa frase, mas ela me mostrou esse conceito.

Minha avó amava a cultura. Todos os milhares de livros na casa dela eram catalogados, qual uma biblioteca. Já não disse que eram mil deles em cada prateleira? Imagina o trabalhão…

Pois foi na casa dela que eu comecei a escrever. Eu devia ter uns doze anos quando fui fuçando nas coisas (ah, a curiosidade das crianças) e achei uma velha máquina de escrever. Minha avó me avisou: “não mexa nisso para não quebrar, essa máquina é do seu pai!”. Fiquei surpreso! Jamais imaginei que meu pai tivesse um segredo escondido ali! Uma peça que eu nunca vira meu pai usar, mas que ele tinha. E eu logo quis descobrir para que servia. Afinal, se meu pai “brincava” com aquilo, só podia ser algo legal. Minha avó me ensinou a enfiar o papel. Era uma coisa que a nova geração nem sonha como é:

“Põe se o papel, solta-se as travas, junta-se as pontinhas até ficarem alinhadas, volta o papel, dá um tapa nessa peça do lado esquerdo pro carro voltar ao ponto do início do papel e agora é só escrever”

Foi então que o desafio de uma página em branco me conquistou pela primeira vez. “Só escrever? Como assim? Escrever o que? O QUE EU QUISER??????????”

Foi então que eu quis. Peguei uma história que meu pai vivia contando sobre ele mesmo e a mágica se deu: transformei a história em letras impressas no papel e escrevi minha primeira crônica. Já mencionei que eu tinha apenas uns doze anos?

Saí correndo para tornar minha história pública (eu já era um futuro jornalista, né? – que adianta escrever algo e não mostrar pra ninguém???). Mostrei para a família toda. Meu pai começou ali um jogo que não acabou nunca, e que mantemos até hoje, mesmo depois de sua morte. Disse que estava bom, mas que podia melhorar. Ele sempre fez isso. Ele queria mais! Ele queria ver em mim um pequeno Rubem Braga, não se contentava com menos. Por isso insistiu tanto para que eu lesse mais livros. Até eu me viciar em Fernando Sabino aos quatorze anos. E ele incentivou muito meu vício me comprando todos os livros e até me levando para pegar um autógrafo do meu autor preferido (que tenho até hoje). Cheirei muitos os livros do Fernando Sabino, até aprender sobre como é ser um cronista. Não me refiro a nenhum hábito  ilícito.  Afinal, como eu disse lá no início, o cheiro da casa da minha avó era de cultura, não falei? Pois foi assim que eu absorvi tudo o que li: pelo olfato!

A geração mais rápida

ImagemQuando fiz uma pesquisa sobre o livro “The Dumbest Generation”, de Mark Bauerlein, descobri que, desde que o mundo é mundo, os mais velhos se assombram com a burrice dos mais novos. Sério mesmo. Sempre se criticou os jovens por não cultuarem os mesmos livros, por não acompanharem os mesmos raciocínios, por não seguirem os ídolos de seus antepassados e por aí vai. Os nostálgicos sempre derramaram um sentimento de assombro em relação aos novatos.

Hoje, a modernidade avança mais ainda nesse sentindo. Agora, o pessoal com mais de quarenta tem medo do empobrecimento da cultura dos mais novos. Nos tempos atuais, a “Modernidade é Líquida”, segundo Bauman. Os jovens não precisam mais saber de cor quem foi Mem de Sá. Eles podem pesquisar e trazer em segundos a resposta, talvez até com mais detalhes e dados do que nós, da velha geração, que temos uma vaga lembrança de quem foi o fidalgo.

Sai a decoreba. Caem por terra os estudos que nos forçavam a estabelecer a cognição na marra, seja via aprendizado real, seja via decoreba pura e simples. Entram em cena os videogames em ritmo alucinante. Alguns teóricos dizem que a cognição dos mais novos é tão alucinante quanto a exigida pelos joguinhos eletrônicos. Entra em cena com eles a aceleração do pensamento.

Hoje, vemos diante de nós, na internet, uma enxurrada de informações. Recebemos em uma hora na nossa caixa de e-mail mais dados do que nossos antepassados recebiam ao longo de um dia inteiro. E vamos aprendendo a filtrar, bater o olho, separar o joio do trigo. Ensinamos nosso cérebro a ter a agilidade de um jogo eletrônico para não seremos soterrados pela enxurrada de pensamentos.

Agora entram em cena os “transtornos” moda. Todo mundo já sabe quais são de cor e salteado. Você certamente conhece alguém que assume ter TOC, TDAH, Transtorno Bipolar, depressão… Para onde caminhamos? Será que estamos preparados para lidar com o excesso de informação, fenômeno angustiante já antecipado há mais de vinte anos pelo professor Ciro Marcondes quando o entrevistei na USP?

Vemos a morte dos jornais impressos, mas como bem lembrou Ethevaldo Siqueira em artigo de hoje, o jornalismo não vai morrer. O consumo de notícias e informações nunca esteve tão em alta. Afinal, esta é a era da informação. Nós, jornalistas, estamos competindo com autores de blogs que nunca pisaram numa escola de comunicação e tem publico cativo. Que fazer? Não tenho a resposta para a pergunta, mas penso que o consumo de remédios contra a ansiedade só vai aumentar. Ingressar na carreira de medicina talvez fosse uma saída…

Amor em família

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Eu defendo a importância da Família. Normalmente, estamos acostumados a pensar em amor como uma relação entre homem e mulher. E, neste campo, há mesmo muito desamor hoje em dia, haja visto que o número de divórcios bateu recorde com aumento de 45,6% no final do ano passado (segundo informações do Registro Civil divulgadas pelo governo).

Mas estou atento aqui a outro tipo de amor, não relacionado ao mito romântico. É o avesso, o desamor em família, que abre as portas para a barbaridade e a crueldade dos casos recentes da criminalidade.

Dizer que a pobreza gera a maldade é uma enorme injustiça. Primeiro porque se todos os brasileiros na linha da pobreza resolvessem cometer crimes, teríamos uma multidão ainda maior e mais incontrolável de criminosos. Segundo, porque também há ricos e poderosos que cometem crimes bárbaros, como no exemplo recente do médico do Rio de Janeiro que jogou dois cães pela janela.

Minha tese, baseada em observação empírica, é de que o enorme desamor pelo semelhante é fruto da desestruturação das famílias. Se a criança não é amada e respeitada desde a primeira infância, se é tratada como coisa, objeto, ou “pedra no caminho”, como vai entender a importância de amar ao próximo? Como vai compreender a dor de outra família que perde o ente querido? Como vai entender o horror de uma mãe que vê seu filho destroçado pela ação de bandidos?

Acho interessante quando dizem que o problema da criminalidade é gerado pela falta de educação. Concordo, é claro. Mas quando penso “em falta de educação”, não acho que estamos nos referido ao fato de que a pessoa não sabe quem foi Mem de Sá. Acho importante pensarmos na educação PARA O AMOR.

Dia desses vi uma criança pequena sendo carregada pela mãe pendurada pelo bracinho esticado, como se ela fosse uma sacola ou objeto. Torço para que essa criança nunca tenha o braço destroncado, e nunca desconfie do interesse da própria mãe de protegê-la ao invés de expô-la ao perigo.

Existem ONGs que fazem um belíssimo trabalho com mulheres grávidas de baixa renda. As gestantes são orientadas quanto à atenção básica com o bebê, recebem instruções sobre os cuidados necessários e até são estimuladas a darem carinho. Certíssimo. “Quem ama cuida”.

As crianças são criadas “sozinhas” dentro de casa, muitas vezes sem pais e por mães guerreiras que passam o dia correndo atrás do sustento. Quem cuida delas são em geral irmãos mais velhos, ou “olhadas’ por uma vizinha que não lhes deve amor. Lamento que não conheçam o que é o amor em família. Prometo procurar algum psicólogo ou cientista social que tenha dados que ajudem a comprovar que essa é a origem da crueldade e da barbárie. Ou se você, leitor, conhecer algum trabalho nesta área, me indique.

Enquanto isso, minha prioridade é incentivar o trabalho desses abnegadas que ensinam as gestantes a amar. Essa é a primeira lição aprendida ao nascer, para depois podermos educar a criança ao longo da vida. Mais tarde podemos contar pra ela quem foi Mem de Sá, fidalgo administrador de uma colônia que participou ativamente da construção da sociedade estratificada que privilegia os ricos em detrimento dos pobres.

Sonho de um fumante

Ricardo era um próspero comerciante. Mas, sempre angustiado com  suas contas a pagar, tinha um defeito. Fumava. E muito. Era um cigarro atrás do outro. Quem se desesperava era Gumercinda, sua mulher, que vivia dizendo: “cuidado, Ricardo, esse cigarro todo ainda vai lhe matar”. Mas, Ricardo não conseguia… fumava o tempo todo. E eram cigarros daqueles fortes, de filtro “vermelho”, cuja fumaça ele sorvia como se disso dependesse para sobreviver.

Eis que determinado dia assalantantes invadiram a loja dele e fizeram todos os funcionários reféns. Ricardo, que era burro para algumas coisas, não era para outras, e claro que não reagiu. Mas acontece que àquela hora da manhã, um funcionário já tinha ido ao banco depositar dinheiro e o caixa estava vazio. Os bandidos não se deram por satisfeitos com a operação frustrada e, na pressa da fuga, atiraram contra Ricardo bem no peito, na altura do coração. Levado ao hospital, ele passou por uma cirurgia para extrair a bala alojada no peito, que ficou perto, mas muito perto MESMO do coração. Qual não foi a surpresa de dona Gumercinda quando o médico explicou que a bala foi desviada pelo maço de cigarros que estava no bolso da camisa – não fosse por isso, o tiro direto no coração teria sido fatal. Cruel mesmo com Dona Gumercinda foi ler no dia seguinte no jornal de notícias populares:

“Cigarro salva a vida de comerciante em assalto”.

Ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei… tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícius de Moraes

Escrever é economizar palavras

Economize palavras – “escrever é economizar palavras” disse o mestre Armando Nogueira. Vejamos a história do vendedor de peixes na feira. Comerciante próspero, resolveu incrementar a barraca com a seguinte frase: “Aqui, vende-se peixe fresco”. Chamou o amigo culto para conferir se não havia erros. O amigo fez as seguintes observações: “acho que podemos apagar o “aqui”, pois todo mundo está vendo que sua barraca não está “lá”; aconselho apagar o “fresco” uma vez que o amigo não vende peixe estragado. Podemos tirar o “vende-se” já que na feira nada é de graça e, por fim, vamos tirar a palavra peixe, pois o cheiro indica o produto que está sendo vendido”. E lá se foi a placa do peixeiro.

In Marcelo Parada – Rádio: 24 horas de jornalismo