Não saiu no jornal

Ontem o senhor Gustavo de Freitas abraçou sua esposa, Rosalva de Freitas, pela cintura e fez com que ela rodopiasse pela sala. Ele estava exultante. Estava feliz com uma boa notícia que recebera no trabalho. Então os dois se beijaram longamente e ele a levou, no colo, até o quarto, onde fizeram amor com sofreguidão.

Isso não é notícia de jornal. Se ele tivesse esfaqueado a mulher 45 vezes de uma só vez, até ela morrer, poderia sair na capa. Os jornais noticiam tudo, menos a vida.

Baseado em “Os Jornais“, de Rubem Braga, in A Borboleta Amarela, 1980, p. 74-76

A Paixão Por Voar

RepAir 1 jpgA profissão de repórter tem seus momentos atrozes, mas permitiu que eu realizasse alguns sonhos de infância. Um deles: voar de helicóptero! Fui repórter aéreo de uma das rádios de jornalismo com maior audiência na capital paulista durante um ano e meio.

A experiência era fascinante. Apesar de, com o tempo, ter perdido o friozinho na barriga das primeiras viagens, a curtição de cada decolagem e o alegre pensamento “lá vamos nós” sempre estiveram presentes. E eu me divertia ouvindo as histórias dos pilotos, conversando e descobrindo algumas coisas. Exemplo:

Um helicóptero não despenca lá do alto em caso de pane por falta de gasolina! Desde as primeiras aulas práticas, os pilotos são treinados em uma manobra chamada “auto-rotação”, que nada mais é do que posicionar as pás das hélices para que girem com a força do vento. Isso cria uma espécie de “pára-quedas”, que ajuda a descer a máquina com certa tranqüilidade. Mas claro que não há muito controle de direção neste procedimento, nem dá para ganhar altura, por isso preciso sempre estar de olho em algum ponto descampado onde seja possível pousar. Por isso, os pilotos não gostam muito de sobrevoar o “paliteiro” do Minhocão – uma região com muitos prédios e nenhuma área livre para casos de emergência.

Nos primeiros vôos eu administrava o nervosismo olhando para os helipontos que se vê no topo dos prédios lá do alto. São Paulo tem um sem número deles. Achava que em caso de emergência, lugar para pousar era o que não faltava. Até que um dia um piloto me contou que em caso de emergência a última coisa que ele iria fazer seria tentar “acertar o alvo” de um heliponto no topo de um arranha-céu em meio ao vento.

Os leigos sempre acham que um helicóptero pode pousar em praticamente qualquer lugar. Na teoria é verdade. Na prática, os pilotos não pousam no meio de um campo de futebol, por exemplo, se bem entenderem – cada movimento desses precisa ser notificado à rede de tráfego aéreo da cidade, e seria necessário justificar muito bem justificado o tal pouso. O que não quer dizer que não ocorra de vez em quando.

Sabendo de minha paixão por voar, vivi boas aventuras com alguns dos pilotos com quem voei por mais tempo. Dávamos razantes sobre as águas da represa de Guarapiranga, pousávamos em ilhotas perdidas no meio do Rio Tietê e cruzávamos o trecho de serra das rodovias Anchieta/Imigrantes, uma sensação, aliás, quase indescritível.

Nossa altura média de vôo era de 150 metros do solo dentro da cidade. Mas, na serra, de onde víamos o mar à distância, era possível cruzar a “interligação” das rodovias e andando mais um pouco nossa altura em relação ao solo de súbito se tornava gigantesca… era possível ver toda a extensão das três estradas (na época não havia o trecho novo da Imigrantes) e o helicóptero pequenino lembrava mais ainda uma pequena mosquinha voando alto, bem alto… (com a gente dentro, um vírus sobre uma mosquinha)

Foi na volta de uma dessas aventuras que eu percebi qual a paixão que faz uma pessoa decidir pela profissão de piloto. Depois de tanto voar, eu sabia que seria arriscado nos enfiarmos no meio das nuvens. Helicópteros de pistão, como o Robinson R22, não podem ter aparelhos para fazer “vôo cego” (por instrumentos), e não têm sequer horizonte artificial. Sem ele, o perigo é perder a relação com o solo e inclinar demais o aparelho, perdendo a sustentação e jogando a máquina direto para o chão. Mas naquele dia meu amigo comandante Machado estava apaixonado pelo céu. E como Ícaro, queria ir além.

Sobre a rodovia Anchieta à caminho do bairro do Sacomã, início da estrada, o piloto começou a olhar fixamente para um ponto no alto, sem conseguir piscar. Eu olhei para ele, que tinha os olhos vidrados: “podemos entrar ali…” Em instantes, ele conduziu o pequeno aparelho até uma “janela” no meio das nuvens. Pouco depois, estávamos voando acima da altura das nuvens… e em instantes estávamos rodeados delas. O piloto parecia estar em conferência com Deus, tamanha a alegria. A visão era linda mesmo… mas eu tremia de medo olhando para a “janela” entre as nuvens, com medo que fechasse. Se acontecesse, seria arriscado demais voltar a descer.Sorte que ele acordou do transe à tempo. E eu senti que nesse dia, tínhamos incomodado um pouco o Criador, indo visitá-lo em casa.

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O Fusca Voador

ImagemEu fazia a cobertura de trânsito por helicóptero. O modelo, um Robinson R22, é bem pequeno, cabem só duas pessoas. É considerado por muitos o “Fusca dos Helicópteros”. Quando uma piloto me disse isso uma vez, pensei que ela se referia apenas à popularidade do aparelho. Por ser barato e de fácil operação, pode ser visto em praticamente todos os angares do Campo de Marte. Também era o modelo utilizado pela maioria das rádios há quinze anos.

A primeira vez que voei num desses foi numa madrugada de tempestade. A cidade inteira estava alagada e um helicóptero sozinho não dava conta de cobrir todos os pontos de alagamento. O colegaWagner Belmonte pediu então que outro repórter decolasse para fazer uma dobradinha. Eu fui o escolhido.

Naquela chuva toda o pequeno aparelho saltitava. Parecia mais um daqueles touros bravos que a gente vê nos rodeios. E lá fomos nós. Para contornar um pouco o medo de estar sobrevoando naquelas condições, eu dizia a mim mesmo que o piloto era tão humano quanto eu e, se achava que dava para ir, então não teria problema. A cobertura correu sem sobressaltos… mas eu ainda não conhecia a cidade tão bem vista do alto e a ajuda do amigo foi imprescindível.

Tempos mais tarde eu me tornei o “repórter aéreo” oficial da tarde e com o tempo perdi aquele aquele medo inicial dos primeiros vôos. Até que um belo dia tivemos um problema logo na decolagem durante um fim de semana e não pudemos voar. Assim que o aparelho “se desgrudou” do chão para ganhar altitude, uma luzinha amarela chamada “clutch” se acendeu com buzina e fomos direto para o chão. Sem sustos, estávamos a pouca altitude, tudo muito tranqüilo. Mas não pudemos mais voar e a cobertura foi por terra naquele sábado.

Na segunda feira eu cheguei mais cedo ao angar e surpresa: descobri porque a piloto tinha me dito que aquele era o Fusca dos helicópteros. Não só por ser “popular”, mas também porque a manutenção era “fácil”. Cheguei a tempo de ver o helicóptero “Robinho” com as entranhas abertas e um monte de peças para fora, tal um Fusca que o dono conserta em casa mesmo, durante o fim de semana. Um mecânico enfiado lá dentro mexia aqui e ali… de repente, quando me viu chegar, fechou a portinhola que dava acesso ao motor, deixando inúmeras peças para fora, limpou as mãos de graxa numa estopa, olhou para mim e disse: “está pronto, pode voar”…

ImagemJuro por Deus que naquele dia eu tremi mais do que na primeira vez em que voei. A sensação de ver o bichinho aberto daquele jeito lembrava da fragilidade do equipamento e acendia a dúvida: e se não for um bom mecânico???

Ainda bem que era! Mas melhor ainda quando a rádio trocou a empresa que prestava o serviço. A outra fazia a manutenção longe dos nossos olhos, o que parecia ser algo bem melhor. Sabe como é, dizem que se a gente visse como é feita uma salsicha, jamais comeríamos de novo.

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Apagamos

ImagemEu me lembro bem onde estava em primeiro de julho de 2001. Foi no dia em que nós roubamos a energia do país inteiro! Nós quem? Todos nós, que estávamos diante do Santuário do Terço Bizantino, em Santo Amaro.

Eu fui até lá acompanhar uma missa do Padre Marcelo Rossi. Do alto do palco, o padre dançava, cantava, e puxava o coro de movimentos aeróbicos seguido por uma multidão gigantesca que repetia a tudo. Cantavam juntos o hit do momento, “Erguei as mãos” e muitos outros.

Então veio outro padre e começou as orações de uma missa (in)comum. Meus olhos passeavam pela multidão e começaram a marejar. Vi pessoas olharem para o céu. Vi pessoas de olhos cerrados. Vi lágrimas escorrendo. Acusado (por quem mesmo?) de ser um pop-star, o padre Marcelo Rossi desceu e veio ao público, não para fazer um “mosh”, afinal não era rock´n´roll, mas para espargir a água benta sobre aquele povo. As pessoas respeitosamente se aglomeravam diante do padre para chegar mais perto, mas o mar de gente ia se abrindo para a passagem dele, tal Maomé liderando seu povo para cruzar o deserto. Fiquei feliz de ver as pessoas levantando fotos de entes queridos doentes, cadeiras de rodas e muitas, muitas carteiras de trabalho para receber a bênção de fé e prosseguirem na luta.

Eu só pensava no texto que faria, que brotava como inspiração dentro de meu peito. Aquela seria uma grande reportagem. Mas a energia ali era tão forte que, de súbito… fez-se a escuridão.

Corri para o carro e liguei o rádio na estação de All News em que eu trabalhava.  Foi o Eduardo Castro que ouvi primeiro dizendo que no bairro em que ele estava, podia ver, ou melhor, não podia ver, porque estava tudo escuro. Foi então que percebi outro movimento de fé,  dessa vez de diversos dos meus colegas do rádio. Mesmo de folga, todos foram entrando no ar e descrevendo o cenário que (não) se via: a escuridão era na cidade inteira. Mas como?

Registrei onde eu estava e descrevi a situação ali também, no bairro de Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo. Comecei a percorrer a cidade e sempre que conseguia, eu ia informando a situação. Em instantes eu e meu motorista já não éramos mais uma das poucas equipes a trabalho nas ruas. Meus colegas de emissora demonstraram sua devoção à profissão e começaram a trabalhar. Aos poucos o rádio (o veículo mais ágil já inventado até agora) foi informando que a coisa era geral no Estado, nos Estados, No Distrito Federal, e eu nunca tinha visto nada daquilo.
Trabalhamos a madrugada toda dando informações, decifrando o que ocorria e informando com agilidade e certeza da informação. Tempos mais tarde descobrimos que houve um problema técnico. Mas eu fiquei com a impressão de que os relatórios do Operador Nacional do Sistema estavam todos errados. O apagão fora causado por nós, que estávamos lá, no Santuário, que mandamos toda a energia do universo para o alto. Tudo sob o comando do Padre Marcelo Rossi!

A escrita é outra – Fernando Sabino

Leio no jornal uma entrevista com o autor de Cem Anos de Solidão. Só que seu nome é Gabriel Garcia Márquez e não Marques, como saiu publicado.

Não que eu seja lá muito cioso dessas coisas, pelo contrário: meus lapsos ortográficos costumam ser bem mais graves que uma simples troca do z pelo s. Fixei na memória a grafia certa do nome do escritor, não só por ter sido com Rubem Braga o seu primeiro editor no Brasil, mas principalmente por causa daquela sensacional entrevista sobre ele, que dei na época a uma estagiária de um jornal do Rio.

– Me mandaram fazer com você uma entrevista sobre o marquês – e ela foi ligando logo o gravador.

– Que marquês? – estranhei.

– Esse que vocês editaram.

– Não editamos nenhum marquês, que eu saiba.

– O autor desse best-seller de vocês, Cem Anos de Perdão.

– De solidão.

– Ou isso: de solidão. Ele não é marquês?

– Não. Ele não é marquês. O nome dele é Gabriel Garcia MÁRQUEZ. Com z no fim. Se duvidar, é capaz de ter até acento no a.

– Então é isso. Foi confusão minha

– e ela não se deu por achado, muito menos por perdida, sempre empunhando um gravador junto ao meu nariz.

– Por que é que o livro dele está fazendo tanto sucesso?

– Porque é um livro muito bom.

– Foi por isso que vocês publicaram? Respirei fundo:

– Por isso o quê, minha filha? Por ser muito bom? Ela me olhou como se estivesse entrevistando uma toupeira:

– O que eu estou querendo saber é por que vocês publicaram o livro dele.

– Porque nos foi recomendado como sendo um livro muito bom. – Recomendado por quem?

– Pelo Neruda.

– Quem?

 – Pablo Neruda. Quando ele esteve no Rio pela última vez, falou com o Rubem que se tratava do romance mais importante em língua espanhola desde Dom Quixote.

– Quem é esse?

– Esse quem? O Rubem?

– Não: o outro.

– Dom Quixote?

– Não: esse cara que você falou antes. O que recomendou o livro. Resolvi deixar cair:

– Você vai me desculpar, minha filha, mas não dá. A entrevista fica para outra vez, quem sabe. É muita honra para um pobre marquês, mas infelizmente… Ou Márquez, se você não se incomoda. No mais, muito obrigado.

– Eu é que agradeço!

Ela desligou o gravador, com ar satisfeito, despediu-se e foi embora. Tudo depende do nosso ponto de vista em relação ao assunto.

O meu era de frente, em relação a esta outra: uma estudante de seus dezoito anos (vestibular do curso de Letras) que vinha a ser um verdadeiro esplendor.

 Esplendor de nossa raça, bem entendido: direi em resumo que tinha competência para passar no vestibular do que quisesse, no que dependesse de apresentação física. Sua pele era da cor de sorvete de chocolate, daquele mais claro, mas não tão fria, muito antes pelo contrário, viva e cálida como a de um fruto – cor de jambo, como se dizia antigamente, só que já não me lembro bem da cor do jambo, faz tempo que não vejo um. O rosto era brejeiro, como também se dizia antigamente. E o corpo perfeito como… como…

– Como?

– Eu perguntei o que faz um redator. Sentada à minha frente, ela deixara o eterno gravador ligado sobre a mesinha entre nós e esperava pela minha resposta, pernas cruzadas, joelhos à mostra. Descruzei as minhas:

– Não entendi bem a pergunta. Antes de mais nada, como é mesmo o seu nome?

– Lindalva – respondeu, com voz de criança.

– O que foi mesmo que você me perguntou, Lindalva?

– Eu perguntei o que faz um redator.

– Um redator? Um redator redige, não é isso mesmo? Mas por que você está me perguntando isso? Ela desatou as pernas:

– Você não é um redator? Cruzei as minhas:

– Bem, de certa maneira… no jornal não sou propriamente um redator, mas um cronista. Ou um colunista, se você prefere. Também redijo, não há dúvida, mas o que eu sou na realidade é um escritor.

– E o que faz um escritor? – ela perguntou então, inalterável. Meu Deus, ia começar de novo.

– Um escritor esteve – respondi, com um suspiro resignado.

– Não é isso que eu quero saber – reagiu ela, fazendo beicinho.

– Então perguntou o que você quer saber, Lindalva.

– Quero saber o que eu perguntei: o que faz um escritor:

– Um escritor é um sujeito que só sabe perguntar e não responder a perguntas. Ainda mais perguntas como essa. De repente entendi:

– Ah, você está querendo saber não a função que exerce um escritor, mas as qualidades intrínsecas que fazem de uma pessoa um escritor, não é isso mesmo.

– Isso mesmo: o que é que faz um escritor?

– As qualidades intrínsecas – arrematei.

– Qualidades o quê?

– Intrinsecas.

– Ah, sei… Ela mostrou os dentes, abrindo os lábios num sorriso. Pensou um pouco, e não lhe ocorrendo mais nada a perguntar, desligou o gravador, dando a entrevista por encerrada. Chegou a minha vez de perguntar: – Que faz uma pessoa como você, Lindalva?

– Como eu, como? – Como eu como? Cruzei as pernas, sem que ela descruzasse as suas:

– Estou querendo dizer é que acho surpreendente uma moça como você perdendo tempo em me entrevistar. Acompanhei-a até a porta:

– Por que não entrevista o Sargentelli, e suas lindas mulatas do Oba-Oba? Você tem futuro.

 – Ele também é escritor? Disse-lhe que não: a escrita dele era outra.

 – Gosto muito dos seus escritos – concedeu ela, com um trejeito.

 – E eu dos seus.

– Dos meus escritos?

– Dos seus encantos

– emendei.

– Então tá – e ela estendeu o rosto me oferecendo a face, muito faceira, para um beijo de despedida.

Fernando Sabino