O mito do amor romântico

O amor romântico é o maior sistema energético dentro da psique ocidental. Na nossa cultura, é — mais ainda que a própria religião — a arena em que homens e mulheres tentam conseguir transcendência, plenitude, êxtase e sentido para a vida.

Como fenómeno de massa, o amor romântico é pe­culiar ao Ocidente. Estamos tão acostumados a convi­ver com as crenças e as suposições do amor romântico, que o consideramos como a única forma de “amor” que pode gerar casamento e relacionamentos verdadeiros. Achamos que o amor romântico é o único “verdadeiro amor”. Mas existem muitas outras coisas a este respei­to que podemos aprender do Oriente. Nas culturas orientais, como a da índia ou a do Japão, constatamos que os casais se amam com muita cordialidade, muitas vezes com uma devoção e uma estabilidade que desco­nhecemos.

Mas o amor deles não é o “amor romântico” como nós o conhecemos. Eles não impõem aos seus relacionamentos os mesmos ideais que impomos aos nossos,  nem fazem exigências impossíveis ou alimentam expec­tativas como nós fazemos.

O amor romântico não é apenas uma forma de “amor”, mas é todo um conjunto psicológico — uma combinação de ideais, crenças, atitudes e expectativas. Essas ideias, frequentemente contraditórias, coexistem no nosso inconsciente e, sem que percebamos, dominam nossos comportamentos e reações. Inconscientemente, predeterminamos como deve ser um relacionamento com outra pessoa, o que devemos sentir e mesmo o que devemos “lucrar com isso”.

 

O amor romântico não significa apenas amar alguém; significa “estar apaixonado”. Este é um fenó­meno psicológico muito peculiar. Quando estamos “apaixonados”, acreditamos ter encontrado o verdadei­ro sentido da vida revelado num outro ser humano. Sentimos que finalmente nos completamos, que encon­tramos as partes que nos faltavam. A vida, de repente, parece ter atingido uma plenitude, uma vibração sobre-humana, que nos ergue acima do plano comum da exis­tência. Para nós, estes são os sinais seguros do “amor verdadeiro”. Este conjunto psicológico inclui uma exi­gência inconsciente de que o nosso amante ou cônjuge nos alimente continuamente com esta sensação de êxta­se e de emoção intensa.

Com a típica presunção ocidental de estarmos sem­pre com a razão, achamos que o nosso conceito de “amor”, o amor romântico, deva ser o melhor. Presu­mimos que, comparado a este, qualquer outro tipo de amor entre homens e mulheres seria frio e insignifican­te. Mas se nós, ocidentais, formos realistas, teremos de admitir que o nosso enfoque do amor romântico não está funcionando bem.

Apesar do êxtase que sentimos quando estamos “apaixonados”, passamos boa parte do nosso tempo com uma profunda sensação de solidão, alienação e frus­tração causada pela nossa incapacidade de construir re­lacionamentos afetuosos, baseados em compromissos. Culpamos geralmente os outros por nos terem falhado; não nos ocorre que talvez sejamos nós que precisemos modificar nossas próprias atitudes inconscientes — as expectativas que alimentamos e as exigências que im­pomos aos nossos relacionamentos e às demais pessoas.

 

Esta é a grande ferida na psicologia ocidental, é o problema psicológico básico da nossa cultura. Jung disse que se descobrimos a ferida psíquica num indiví­duo ou num povo, aí descobrimos também o caminho para a conscientização, pois é no processo de cura das nossas feridas psíquicas que acabamos por nos conhecer a nós mesmos. O amor romântico, se realmente tentar­mos compreendê-lo, pode tornar-se tal caminho para a conscientização. Se os ocidentais se libertarem da servi dão maquinal às suas presunções e expectativas incons­cientes, não apenas atingirão uma nova consciência em seus relacionamentos como também uma nova consciên­cia de si próprios.

O amor romântico se tem manifestado em muitas culturas no desenrolar da história. Nós o encontramos na literatura da Grécia antiga, no Império Romano, na antiga Pérsia e no Japão feudal, mas a nossa sociedade ocidental moderna é a única cultura da história que teve a experiência do amor romântico como um fenómeno de massa. Somos a única sociedade a cultivar o ideal do “amor romântico” e a fazer do romance a base de casa­mentos e relacionamentos amorosos.

O ideal do amor romântico irrompeu na socieda­de ocidental durante a Idade Média, surgindo pela pri­meira vez na literatura no mito de T ris tão e I solda, de­pois nos poemas e nas canções de amor dos trovadores. Era conhecido como “amor cortês” e tinha por mode­lo o intrépido cavaleiro que honrava uma bela dama e fazia dela a sua inspiração, o símbolo de toda a beleza e perfeição, o ideal que o incentivava a ser nobre, espi­ritualizado, refinado e voltado para assuntos “eleva­dos”. Na nossa época introduzimos o amor cortês nos casamentos e nos relacionamentos sexuais, mas ainda mantemos a crença medieval de que o amor verdadeiro tem de ser a adoração extática de um homem ou de uma mulher que representa para nós a imagem da perfeição.

Jung nos mostrou que quando um fenómeno psi­cológico marcante acontece na vida de um indivíduo, isto significa que um tremendo potencial inconsciente está emergindo, prestes a manifestar-se ao nível da consciência. O mesmo é válido para as coletividades. Num determinado ponto da história de um povo, uma nova possibilidade surge do inconsciente coletivo; é uma nova ideia, uma nova crença, um novo valor ou, ainda, uma nova maneira de encarar o universo. Isto representa um bem em potencial, se puder ser integra­do ao consciente, mas a princípio é assustador e até mesmo destrutivo.

O amor romântico é um desses fenómenos psico­lógicos realmente arrasadores que surgiram na história dos povos ocidentais. Foi algo que esmagou nossa psi­que coletiva e alterou permanentemente nossa visão do mundo. Ainda não aprendemos a lidar coletivamente com o tremendo poder do amor romântico. Frequente­mente nós o transformamos em tragédia e alienação e não em relacionamentos humanos duradouros. Acredi­to, porém, que se homens e mulheres compreenderem os mecanismos psicológicos que atuam por trás do amor romântico e aprenderem a lidar com eles conscientemente, terão nas mãos a chave para novas possibilida­des de relacionamento, tanto com os outros como con­sigo mesmos.

Nosso veículo para explorar o amor romântico é o mito de Tristão e Isolda. Trata-se de um dos mais comoventes, belos e trágicos de todos os grandes rela­tos épicos. Foi a primeira história na literatura ociden­tal a lidar com o amor romântico, e é a fonte da qual se originou toda a nossa literatura romântica, desde. Romeu e Julieta até a história de amor em cartaz nos cinemas do bairro. Aplicando os princípios da psicolo­gia jungiana, interpretaremos os símbolos do mito e co­nheceremos por ele as origens, a natureza e o significa­do do amor romântico.

O mito de Tristão e Isolda, como o de Parsifal, é um “mito masculino”. Ele retrata a vida do jovem Tristão que se transforma num herói nobre e altruísta, para depois se deparar com uma experiência arrasadora em sua vida: a paixão pela Rainha Isolda. É como uma simbólica peça de tapeçaria, que retrata em cores vivas o desenvolvimento da consciência individual do homem na luta para conquistar sua masculinidade, conscientizar-se do seu lado feminino e lidar com o amor e o re­lacionamento. É uma história que mostra um homem dividido entre a lealdade e as forças conflitantes que se agitam ferozmente na psique masculina, enquanto ele é consumido pelas alegrias, paixões e sofrimentos do romance.

Mesmo assim, existe neste mito muita coisa de grande valor e interesse para as mulheres, pois Tristão revela também o mecanismo universal do amor român­tico que é comum a homem e mulheres (ver “Uma observação para as mulheres”). Examinar esse mito, senti-lo como uma rica evocação do processo da psique ocidental, é algo que irá ajudar a mulher não apenas a compreender melhor o homem na sua vida, como tam­bém a ver mais claramente as forças misteriosas que atuam dentro dela mesma.

Tanto para o homem quanto para a mulher, en­xergar realisticamente o amor romântico é uma tarefa heróica. É algo que nos força a ver não apenas a beleza e o potencial contidos no amor romântico, como tam­bém as contradições e as ilusões que trazemos conosco ao nível inconsciente. Jornadas heróicas conduzem sem­pre a vales sombrios e a confrontos difíceis mas, ao perseverarmos, alcançaremos um novo estágio de conscientização.

De “We – A chave da psicologia do amor romântico” – Robert A. Johnson Ed. Mercuryo

Autor: jemmarcondes

É jornalista há mais 20 anos, com ênfase na atuação em rádio e televisão. Foi repórter, editor e apresentador, com passagens por diversas emissoras com sede na capital paulista, principalmente o Grupo Bandeirantes e o SBT. Atualmente faz pós-graduação em Marketing Digital e Mídias Sociais

20 comentários em “O mito do amor romântico”

  1. Eu gostei muito e espero que sejam lidops por mais pessoas pois vale apena.É uma pena eu não ter encontrado mais explicação como essa.
    Queria deixar um beijo para todos

  2. A trilogia toda. He She e WE.
    E estaremos bem encaminhados numa onda de consciência.
    FIníssima matéria que vai fundo nas camadas mais
    iteriores da psiquê.

    Além de lindo, poético, delicado.

  3. Belo blog sobre psicologia!

    Frequentarei aqui mais vezes!

    Esse post realmente tem a ver com o que eu procuro sobre psicologia!

    se quiser que eu publique algo de sua autoria, é só falar que eu coloco no meu blog com sua identificação e endereço do blog!

    da uma olhada no http://psicologiaparatodos.16mb.com

    abraços!

  4. Me recomendaram este artigo,para que eu pudesse ter uma base mais sólida em um estudo que estou realizando. Adorei,por sinal. O amor não deve ser uma mazela. Os amantes,tão pouco, desesperados ,em busca de que tudo tenha “um final feliz”. Deve-se buscar a realização através de outras conquistas,individuais ou em parcerias. Creio que assim,as pessoas serão mais felizes,equilibrando os sentimentos.

  5. Gostei demais do seu artigo e estou citando-o no meu trabalho de conclusão de curso. Gostaria de fazer a referência da maneira mais correta possível, porisso gostaria de saber se foi publicado em outro meio de publicação.

  6. Muito útil, merece boas reflexões. Estou procurando o autor do seguinte texto: “…acho que o amor romântico é possível, mas não pode ser tomado como uma regra, por que foi uma construção histórica. Veio da Idade Méda e aflorou durante o romantismo….” Alguém sabe?

  7. Só sei que a maior parte da humanidade consegue aconchego em um amor romântico, monogâmico e sem preconceito. A tentativa séria de liberdade sexual foi importante para se conseguir entender o que realmente supre cada um de nós.

  8. Amo a psicologia junguiana,ela é um caminho p/ o amor e p/ Deus,devemos cada dia aperfeiçoá-la através da nossa própria busca pela individuação,assim deveremos com certeza estar indo de encontro ao bem comum e coletivo.

  9. muito bom, muito bom mesmo..que interessante é dar nomes as “coisas”..sentia e não sabia porque era assim…agora sei!
    valeu, obrigada!

  10. Muito bom. a procura de alguém que entenda que o amor verdadeiro não precisa ser a ilusão de um amor romântico.

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